terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Mineirinho (por Clarice Linspector)



Mineirinho

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.

Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.

Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.

A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.

E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.

Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.


Clarice Linspector.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Dicas de português: Grau superlativo absoluto sintético

amargo = amaríssimo ou amarguíssimo
amigo = amicíssimo
bom = ótimo ou boníssimo
cruel = crudelíssimo
doce = dulcíssimo ou docíssimo
fiel = fidelíssimo
frágil = fragílimo
grande = grandíssimo ou máximo
jovem = juveníssimo
livre = libérrimo ou livríssimo
notável = notabilíssimo
pequeno = mínimo ou pequeníssimo
pobre = paupérrimo ou pobríssimo
sábio = sapientíssimo
sério = seriíssimo
simples = simplíssimo ou simplicíssimo
vão = vaníssimo


Fonte: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/superlativo-absoluto-sintetico-conheca-a-flexao-de-60-adjetivos.htm

sábado, 15 de fevereiro de 2014

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Alienação

Ela aliena a ação, aliena a nação, é alien na ação... santa alienação!
Joga na descarga e puxa o cordão!
Vrushhhhhhhhhhhh!

Poesia libertária que não precisa de versos, faz-se sem rima.
Hoje em dia, triste dizer, quanto mais curta, mais curtida.
Afinal, ponto final.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A perniciosa onda anti-partidária (fascista) de junho de 2013.

Em junho de 2013, no auge das manifestações, o Brasil foi invadido por uma onda nacionalista. Pessoas sem nenhum interesse por política ou por questões sociais de repente se engajaram nos protestos. Muitos iam sem saber muito a razão, se portavam como se estivessem indo para um evento social, um show ou um desfile de carnaval. No seio do movimento surgiu o anti-partidarismo, expressando ódio contra as bandeiras de partidos de esquerda como PT e PSTU. O movimento tomou ares de fascismo, só a bandeira brasileira era aceita, nenhum movimento de esquerda, nenhum partido político, nenhuma entidade representativa podia ser tolerada. Se nos tempos da ditadura a repressão se fez pelas mãos dos militares, em junho de 2013 foi a população que foi às ruas que reprimiu os movimentos de esquerda. Aqueles movimentos que mais lutaram por avanços sociais nas últimas décadas, a UNE (União Nacional dos Estudantes), a CUT (Central Única dos Trabalhadores), dentre outros movimentos de esquerda, foram hostilizados nas ruas de diversas cidades por manifestantes, em sua maioria, de pouco ou nenhum engajamento político. A onda de perseguição foi insuflada por reacionários e fascistas, os quais sabiam bem a violência que iriam provocar. O vandalismo também recrudesceu à medida que a polícia foi incapaz de controlar os milhares que iam às ruas, alguns deles muito exaltados e dispostos a depredar o patrimônio público e privado e a praticar delitos. O movimento, descrito pela mídia como espontâneo e popular, foi largamento incentivado através da internet por grupos e páginas de redes sociais, especialmente do Facebook. Páginas como a do Anonymous Brasil, e outras de grupos de extrema direita, alimentaram diariamente a rede social com postagens que incentivavam os brasileiros a irem às ruas. 

Em nota, o Movimento Passe Livre, o mesmo que deu início às manifestações de junho de 2013, as quais inicialmente se restringiram à questão da qualidade do transporte público e ao aumento das passagens, repudiou a violência contra os movimentos e partidos de esquerda. 

Confira a nota completa:
"O Movimento Passe Livre (MPL) foi às ruas contra o aumento da tarifa. A manifestação de hoje faz parte dessa luta: além da comemoração da vitória popular da revogação, reafirmamos que lutar não é crime e demonstramos apoio às mobilizações de outras cidades. Contudo, no ato de hoje presenciamos episódios lamentáveis de violência contra a participação de diversos grupos.

O MPL luta por um transporte verdadeiramente público, que sirva às necessidades da população e não ao lucro dos empresários. Assim, nos colocamos ao lado de todos que lutam por um mundo para os debaixo e não para o lucro dos poucos que estão em cima. Essa é uma defesa histórica das organizações de esquerda, e é dessa história que o MPL faz parte e é fruto.


O MPL é um movimento social apartidário, mas não antipartidário. Repudiamos os atos de violência direcionados a essas organizações durante a manifestação de hoje, da mesma maneira que repudiamos a violência policial. Desde os primeiros protestos, essas organizações tomaram parte na mobilização. Oportunismo é tentar excluí-las da luta que construímos juntos.

Toda força para quem luta por uma vida sem catracas."
MPL-SP

Abaixo os links de alguns vídeos sobre a violência e a intolerância nos protestos de junho de 2013:

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

De amor

Falar de amor é lembrar com saudade.
Falar de amor é respirar o ar de outro.
Falar de amor é esquecer de muitas possibilidades.
Falar de amor é falar da solidão do mundo.
Falar de amor é sorrir sozinho.
Falar de amor é acreditar no impossível.
Falar de amor é plantar na seca.
Falar de amor é esperar o improvável.
Porque falar de amor é negar o agora.